Empresário e economista
gastaoreis@smart30.com.br
www.smart30.com.br
“E eu com isso?”, poderia me perguntar você, caro leitor, em relação ao presidencialismo. E eu respondo: muito, muito mais do que possa imaginar à primeira vista. Não vou me prender a tecnicalidades para não tornar este artigo maçante e fugir à essência do que precisa ser dito: a enormidade dos desacertos e infortúnios que ele trouxe para a vida política do país, em especial a queda brutal da qualidade do homem público, do político brasileiro.
Presidencialismo é um sistema de governo onde se põe poder demais nas mãos de uma só pessoa, do presidente. No caso brasileiro, no arbítrio do presidente. Parlamentarismo é também um sistema de governo com a diferença marcante de que o poder é exercido de modo colegiado. Este último nos remete à praça grega onde os cidadãos livres tomavam suas decisões sobre a pólis, a cidade, democraticamente. Em poucas palavras: poder sob permanente controle dos governados. Este ponto é fundamental para entender que quando nos afastamos desse modelo, a tendência de longo prazo é criar um fosso entre governantes e governados. Os acontecimentos recentes ocorridos no congresso nacional, sem descartar os de nossa história política republicana mais remota, dão bem a medida da profundidade que esse fosso pode atingir.
Muitos são os vícios do presidencialismo. O primeiro deles é que o sistema permite que a confiança do distinto público no homem público não seja mais a pedra fundamental da vida pública. Os exemplos abundam. O mais flagrante deles é nosso velho conhecido. Qualquer político pego com a boca na botija se defende afirmando que não se provou nada em justiça contra ele. E lá ficamos nós como plateia muda aguardando anos a fio pela decisão da justiça enquanto os Malufs da vida continuam se servindo da botija, ou seja, do nosso dinheiro. O mensalão é emblemático. A queda de alguns não levou de roldão o chefão da quadrilha, até agora incólume porque não sabia de nada, como ele diz e ninguém acredita. Num regime parlamentarista, a conversa é outra. Um político cai por simples perda de confiança popular ou do próprio Parlamento nele. Não temos que provar nada em justiça.
O segundo vício, no caso brasileiro, é a castração do parlamento como fórum de debates capaz de discutir e propor iniciativas de leis que, com fre-quência indevida, partem do executivo, ou seja, do presidente da república. A isso se chamou de presidencialismo de coalizão para viabilizar a governabili-dade, sempre muito aquém do que gostaríamos. A rigor, melhor seria rotular a coisa de legislativo presidencialista em reconhecimento a quem dá as cartas.
O terceiro vício, em função da omissão do nosso parlamento, é que o orçamento federal é indicativo e não impositivo. Em português claro: o que é aprovado por nossos representantes não é necessariamente o que vai acontecer. Diferentemente do jogo do bicho, o escrito não vale. Ou pode não valer, pois o presidente dispõe de um instrumento, o contingenciamento de verbas, em que sua canetada fala mais alto. Os representantes do povo, os deputados, têm que ficar mendigando favores ao dito cujo para fazer valer os compromissos assumidos com seus eleitores. Algo do tipo o povo na fila de espera para ter vez, quando tem. Antes que você contra-argumente querendo saber como fazer isso com a falta de representatividade (e seriedade) de nossos representantes no congresso, é importante deixar claro que a adoção de um governo parlamentar pressupõe uma profunda reforma político-eleitoral-partidária capaz de pôr ordem na casa, com incentivos corretos ao surgimento de lideranças políticas de qualidade. Uma espécie de Plano Real na política.
O quarto vício não é tão óbvio, mas faz um estrago monumental no nosso dia-a-dia. Num regime parlamentar, o chefe do executivo, o primeiro-ministro, tem que prestar contas de seus atos de governo semanalmente ao Parlamento, ou seja, aos representantes do povo. Essa é uma prática de controle do poder da melhor qualidade a que nossos presidentes não estão obrigados a fazer regularmente por obra e desgraça do regime presidencialista. Na verdade, fogem até das perguntas dos jornalistas como o diabo cruz, como se fossem impertinências desrespeitosas ao grão senhor presidente.
O quinto vício é uma decorrência do anterior. Justamente por não fazerem um acompanhamento sistemático do dia a dia dos atos de governo, nossos supostos representantes no congresso se dedicam a um furor legislativo contraproducente: excesso de leis, inclusive para tentar disciplinar leis anteriores que não funcionam. Existem aquelas natimortas por baterem de frente com as leis objetivas do mercado (caso clássico de tentar tabelar preços, lição que a Argentina reluta em aprender), e ainda as que, por incompetência, são inexequíveis na prática (a reformulação da lei sobre empregados domésticos é um triste exemplo dessa variedade para não mencionar o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente no que tange à responsabilidade criminal de menores).
Poderia continuar a listar os efeitos devastadores que o famigerado presidencialismo provocou ao longo de nossa história republicana. O estrago maior foi jogar por terra uma tradição de cunho parlamentarista de quatro séculos de nossa história. Os prefeitos de nossas cidades eram os presidentes das câmaras municipais. No caso de Petrópolis, assim o era, curiosamente, até 1915, 25 anos após a proclamação da república presidencialista. Já deu para perceber, caro leitor, que os estragos do presidencialismo são muito concretos e, em boa parte, explicam nosso lento processo de desenvolvimento. E a razão é muito simples: quem paga a conta não é ouvido e está longe de ter poder de veto sobre os desatinos. Um milhão e meio de assinaturas pedindo a cabeça do atual presidente do senado, ao cair no vazio, retrata bem nossa condição de povo reduzido ao jus sperniandi, ou seja, ao triste “direito” de espernear. E haja pernas para espernear...